Aplicativos de delivery transformaram dinâmicas de trabalho e consumo após a pandemia

Aplicativos de delivery transformaram dinâmicas de trabalho e consumo após a pandemia

Por trás de cada pedido, o abismo entre os desafios para os entregadores e as oportunidades para os restaurantes.

Karolyne Paiva, Maine Pinheiro e Patrick Lóss
Alexandre Teixeira, 24, morador de Serra/ES, pedala de 40 a 50km por dia fazendo entregas para o Ifood. Há sete meses, ele trabalha de 11h às 15h e, depois, das 17h às 21h levando comida aos consumidores de Jardim Camburi, Bairro de Fátima e região. - Foto: Maine Pinheiro

Com uma bicicleta, uma mochila térmica nas costas e um aplicativo no celular, Alexandre faz parte de uma classe de trabalhadores que recorreu às entregas de refeições como fonte de renda, principalmente durante e após a pandemia de Covid-19. Desde então, personagens como ele se tornaram figuras frequentes no cotidiano das pessoas, conectando consumidores a restaurantes por meio de poucos cliques e muitos quilômetros.

No período da pandemia, com a população em isolamento social, a digitalização de serviços se acelerou e o delivery de alimentos tornou-se essencial. De acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) o setor teve um crescimento significativo no período, e o serviço de delivery alcançou 89% dos estabelecimentos brasileiros em 2021. 

Com isso, consolidou-se uma tendência que já se desenhava antes da crise sanitária e que permaneceu nos hábitos de consumo de grande parte dos brasileiros, como é o caso de Maria Vitória Pontes. A engenheira, de 26 anos, que é consumidora frequente do aplicativo Ifood, conta que começou a utilizar a plataforma durante a pandemia e, pela comodidade que é oferecida, opta por pedir, ao menos uma vez por semana, suas refeições pela ferramenta.

Se de um lado da tela Maria Vitória faz seu pedido com poucos cliques, do outro, os entregadores percorrem muitos quilômetros para garantir uma renda. Confira no vídeo a seguir  os depoimentos da cliente e de dois entregadores que fazem seus ofícios pelas ruas  da Grande Vitória.

Muito esforço, pouca grana

O trabalho com delivery sugere uma rotina flexível, mas nem sempre as adaptações a essa rotina são favoráveis. Os horários de maior fluxo para o delivery de alimentos são os de almoço e jantar. Para estarem disponíveis nesses horários, os entregadores precisam reorganizar suas próprias refeições, por exemplo, tendo que fazê-las em horários “incomuns” ou até no intervalo entre as entregas.

A remuneração depende diretamente do sistema de valores definidos pela plataforma, desconhecido pelos trabalhadores. No caso do iFood, além do valor pago por cada entrega, o app oferece “promoções” em momentos de alta demanda ou poucos entregadores disponíveis. Isso permite que eles recebam um pagamento adicional e escalem seus ganhos, mas exige um esforço contínuo e, muitas vezes, imprevisível.

Segundo dados do iFood, em 2023, os trabalhadores dedicaram, em média, 31,1 horas mensais à plataforma, recebendo uma média de R$ 25,96 por hora. Considerando esses números, a remuneração bruta dos entregadores poderia chegar a R$ 2.076,80, numa carga horária semanal de 20 horas, ou R$ 4.153,60 para 40 horas. Nos dois casos, o valor ultrapassa o salário mínimo.

O entregador Alexandre Teixeira afirmou que os valores se aproximam dos reais, mas que quem trabalha de bicicleta não consegue uma renda tão alta. Em seis horas de trabalho, ele recebe aproximadamente R$80,00.

“Fazendo isso durante cinco ou seis dias na semana, no final do mês dá para tirar uns R$2.200,00. Mas o valor de R$4.000,00, só dá pra você fazer quando você tem moto. Com a bike, você consegue alcançar R$2.500,00, até R$3.000,00, trabalhando bastante. De bike, tirar R$4.000,00 não dá, é irreal”, contou.

Pressão e riscos

Na correria diária, o serviço de entregas é uma opção viável para quem busca agilidade. Isso se reflete no comportamento de muitos entregadores, que às vezes infringem regras de trânsito e se expõem a riscos de acidentes. Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) mostrou que muitos motoboys desrespeitam as leis de trânsito para cumprir prazos apertados e aumentar sua renda, uma vez que, quanto mais rápidas as entregas, maior o número de pedidos atendidos, logo, maior o ganho financeiro.

O estudo revela que, de forma paradoxal, os motoboys justificam atitudes como andar acima da velocidade, sobre a calçada, ultrapassar sinais vermelhos e dirigir entre os “corredores” como uma questão de sobrevivência. Para eles, tempo e velocidade são sinônimos de dinheiro.

Essas imprudências contribuem para o aumento de acidentes e mortes entre motociclistas no Brasil. Em 2022, foram registrados 24.642 acidentes envolvendo esses profissionais. Diferentemente dos motoristas de automóveis, os motociclistas são mais vulneráveis devido à limitada proteção que possuem. Nesse contexto, surge uma questão preocupante: o que acontece caso esses trabalhadores sofram um acidente?

O seguro do iFood para motoboys oferece cobertura em caso de acidentes durante as entregas, cobrindo despesas médicas, indenização por incapacidade e até morte acidental. Ele é ativado quando o entregador está logado no aplicativo, realizando entrega. Após o acidente, é necessário fornecer documentos como boletim de ocorrência, atestados médicos e provas de que estava trabalhando no momento do acidente.

Mas essa ativação só é possível se o entregador estiver consciente. Em casos mais graves, como mortes, o processo pode se tornar mais complicado. Em São Paulo, por exemplo, a família de um motoboy só recebeu indenização após uma ação judicial onde a Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício entre o entregador e o iFood. A empresa argumentou que os entregadores são autônomos, mas a decisão considerou que o aplicativo exerce um controle sobre os trabalhadores, penalizando recusas de entrega ou inatividade no aplicativo, o que limita essa autonomia.

A estudante de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Bruna Cavati Rossi reforçou o argumento do TRT: “Por meio do algoritmo, essas empresas controlam os trabalhadores. As bonificações, bloqueios, exclusões e ranqueamentos não só controlam o trabalho, como também intensificam esse trabalho, ou seja, a suposta autonomia desses trabalhadores não se efetiva, o que existe é apenas uma flexibilidade de horários” afirma.

Sendo assim muitos motociclistas, com medo de serem bloqueados pelos aplicativos e impedidos de trabalhar, acabam concluindo entregas mesmo após o acidente. Às vezes, pedem ajuda de colegas para finalizar a entrega e evitar punições, como suspensão ou menos oportunidades de entregas. Essa pressão constante leva os entregadores a priorizarem o trabalho em vez da própria saúde física, colocando-se em situações de risco para não perderem sua fonte de renda.

Para os restaurantes, oportunidade

Da Grande Vitória para o interior do Estado, a reportagem conversou com Fernando Azevedo Becalli, proprietário da Lanchonete do Bola, no município de Itaguaçu, a 130km de Vitória. Ele conta que desde quando abriu a lanchonete, há 10 anos, começou a oferecer serviço de entrega das refeições. Com a alta demanda no empreendimento, “Bola” encontrou no aplicativo Plus Delivery uma oportunidade para facilitar o pedido dos clientes e a logística da lanchonete.

O Plus Delivery é um dos principais aplicativos de delivery de refeições no Espírito Santo e foi comprado pela Magazine Luiza em setembro de 2020. Com uma plataforma própria, o aplicativo está presente em cidades do Espírito Santo e de Minas Gerais e oferece opções para lojas e para entregadores.

Com o uso do aplicativo, a lanchonete teve um crescimento considerável nas vendas e fez com que mais clientes conhecessem também a loja física. Com esse crescimento, a demanda por entregadores também aumentou.

Uma das maiores diferenças na dinâmica dos aplicativos observadas nas cidades do interior é sobre o vínculo dos entregadores. Enquanto na Grande Vitória, grande parte dos entregadores são cadastrados nas plataformas de entrega, em Itaguaçu, por exemplo, os restaurantes costumam ter entregadores próprios. No caso da Lanchonete do Bola, o proprietário afirma que os entregadores que prestam serviços para o local possuem registro de Microempreendedores Individuais (MEI) no ramo de transporte e firmam um contrato de trabalho com a lanchonete, que faz o pagamento mensal pelo serviço.

Já em São Mateus e Conceição da Barra, o proprietário da rede de lanchonetes Mage Buerger, Benedito Alves, conta que o contrato com os entregadores é no modelo CLT, com vínculo empregatício firmado com o estabelecimento. Porém, nas lojas que a rede possui em Vitória e Vila Velha, a contratação dos entregadores ocorre em modelo PJ. Para ele, isso é uma questão “cultural” do local e das preferências dos motoboys de cada região.

“Em Vitória, os entregadores não querem se prender a um contrato fixo. Por exemplo, quando você está na CLT, tem dias específicos para trabalhar, você não pode colocar alguém no seu lugar. Em Vitória tem total liberdade e autonomia para isso. No interior do Estado não tem isso, acaba que não tem tanto motoboy para colocar no lugar”, afirmou Benedito.

O Mage Burger aproveitou o delivery para expandir seu negócio e oferecer mais praticidade aos clientes. - Foto: Reprodução/Google Maps
O Mage Buerger aproveitou o delivery para expandir seu negócio e oferecer mais praticidade aos clientes. - Foto: Reprodução/Google Maps

Ele, que começou com os empreendimentos durante a pandemia, em 2020, com a loja de São Mateus, sempre utilizou os serviços de entrega. Na pioneira e na recém-inaugurada loja de Vila Velha, atendem somente por delivery. Já em Conceição da Barra e Vitória, atuam também com lojas físicas.

Em todas as lanchonetes da rede Mage Buerger, o iFood intermedia as vendas, porém, nas lojas do norte do Estado os clientes também são atendidos pelo Plus Delivery. Benedito também destaca que no período em que surgiu o negócio, os aplicativos de delivery já estavam em alta, o que foi visto como uma oportunidade para as vendas pelas plataformas.

O que pensam os especialistas?

Para entender esse cenário de transformação e plataformização do trabalho, a reportagem do Avisah ouviu Rafael Bellan, professor de Comunicação da UFES que estuda as relações de trabalho e Bruna Cavati Rossi, estudante de Ciências Econômicas da UFES e integrante do Grupo de Estudos sobre Mulheres, Trabalho e Sindicalismo (GEMTES).

Organização da classe: dos grupos de Whatsapp ao Breque dos Apps

Os aplicativos de delivery mudaram não só o jeito como consumimos, mas também a realidade de quem trabalha com entregas. Sem vínculo empregatício e enfrentando desafios diários, os entregadores encontraram nos grupos de WhatsApp uma forma de se organizar. Esses grupos servem para trocar informações, desabafar sobre as dificuldades, compartilhar dicas e até organizar protestos.

Foi por meio dessa rede virtual que aconteceu o Breque dos Apps em 2020. Durante o movimento, entregadores de várias cidades pararam suas atividades para exigir melhores condições de trabalho, tarifas mais justas e mais transparência nas plataformas. A mobilização chamou atenção para a realidade desses trabalhadores e abriu caminho para discussões importantes sobre direitos desses trabalhadores.

Apesar de momentos de solidariedade, o motoboy Victor Rafael destaca que nem todos os entregadores enxergam essa união da classe: “A gente tem a noção de que os motoboys são unidos, sempre estão se ajudando. E realmente, quando algum cliente é racista, por exemplo, a galera se une contra essas pessoas. Existem grupos de WhatsApp para falar sobre essas questões, mas acho que existe uma divergência de ideias entre os motoboys. Essa mentalidade de ‘eu sou meu próprio patrão’ acaba prejudicando você de reivindicar melhorias. Eu já vi uma pá de motoboy falando assim: ‘Você não gosta? Só desinstalar então’. Mas não tem como, é o seu emprego.”

Essa fala destaca um dos maiores desafios dos trabalhadores uberizados (que têm o trabalho mediado por plataformas digitais): a luta coletiva em um sistema que promove a autonomia individual.

Além dos grupos informais, surgiram associações e iniciativas para fortalecer a representação da categoria, incluindo tentativas de sindicalização. Isso mostra que, mesmo diante das divergências, os entregadores seguem encontrando maneiras de se unir e lutar por condições mais dignas e seguras de trabalho. Para Bruna Cavati, a luta por direitos no mundo do trabalho uberizado deveria ser de todos.

“O trabalho uberizado não é algo passageiro, uma alternativa ao desemprego, é uma tendência do mundo do trabalho. Todos nós estamos sujeitos a trabalhar sob uma série de regras pouco explícitas, com o discurso da autonomia, sem proteção e tendo que arcar com os riscos e custos desse trabalho. É entendendo isso que a gente percebe que a luta desses trabalhadores – entregadores – é ou deveria também ser a nossa”, declara.

Interface do aplicativo Breast Cancer Detection. Foto: Equipe LEDS.

Tecnologia a serviço da saúde: conheça o aplicativo de IA que promete auxiliar no diagnóstico de câncer de mama

Apostas em todo lugar: como as “bets” estão inseridas no cotidiano do capixaba

Mais Lidas

No Brasil, quantos Angelos?

No Brasil, quantos Angelos? Em meio a desafios diários, Angelo Almeida Pin, atleta de tiro com arco da UFES, enfrenta desafios diários para conciliar treino