Especialistas criticam óculos para pessoas com deficiência visual comprados pelo Governo do ES por quase R$ 1 milhão
De acordo com a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB), os “óculos inteligentes”, comprados pelo Governo em agosto, representam uma ameaça para aprendizado de crianças e adolescentes com deficiência visual
Por Bruna Rodrigues, Enzo Bicalho, Juliana Bonfá e Letícia Arcanjo

Vendidos como uma tecnologia assistiva revolucionária, os óculos OrCam MyEye 2.0 foram introduzidos na rotina de alguns estudantes cegos e com baixa visão no Espírito Santo, porém, a implementação da ferramenta tem levantado questionamentos sobre a funcionalidade real do dispositivo e os possíveis impactos negativos no aprendizado, inclusão e acessibilidade escolar de crianças e adolescentes.
Em agosto deste ano, o governo do Espírito Santo comprou e distribuiu 54 unidades do OrCam MyEye para 35 escolas da rede estadual. Um investimento de R$ 924 mil. Cada dispositivo custou R$ 17,1 mil.
“Os ‘óculos inteligentes’ são mais do que apenas uma ferramenta tecnológica; eles são um passo importante para garantir que cada aluno tenha acesso ao conhecimento e às oportunidades que merecem. Esse recurso é um ganho enorme para a autoestima e o desenvolvimento pessoal dos alunos”, pontuou o secretário de Estado da Ciência, Tecnologia, Inovação e Educação Profissional, Bruno Lamas.
Distribuição dos óculos
O governo estadual informou que distribuiu as 54 unidades dos óculos inteligentes entre alunos com deficiência visual de 35 escolas da rede pública do Estado, escolas técnicas e cada um dos 14 Centros de Referência de Juventudes (CRJ). O Instituto Braille também recebeu a doação de uma unidade.
Porém, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH), responsável pelos CRJs, informou que não recebeu os óculos com inteligência artificial em nenhum dos 14 centros. Em nota, a SEDH explicou que a entrega não foi feita pela “alta demanda nas escolas estaduais” e que a distribuição priorizou esse grupo no primeiro momento. Não foi divulgada a lista com as escolas contempladas com os óculos.
Críticas de especialistas
O alto custo e os resultados questionáveis dos óculos adquiridos pelo Governo do Estado acendem o debate sobre a eficiência e a viabilidade dessa ferramenta na vida dos estudantes com a deficiência.
Douglas Christian Ferrari de Melo, professor do Departamento de Educação, Política e Sociedade da UFES e coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Fundamentos da Educação Especial (GEPFEE/Ufes), afirma que o dispositivo apresenta diversas limitações técnicas.
Ele explica que o dispositivo é capaz de ler fonemas, mas não indica como escrevê-los, além de não possuir memória de leitura, ou seja, se a leitura for interrompida em uma página, será necessário retomá-la do início, sem a possibilidade de continuar de onde parou. Esses pontos trazem o questionamento acerca da utilização do aparelho para fins educativos.
“É um recurso que a gente não tinha há um tempo atrás, mas ele não pode ser usado indistintamente, especialmente quando você pensa nas pessoas com deficiência visual. Pois, isso fortalece um processo que já acontece há algum tempo com o computador, que é o processo de desbraillização. Essa pessoa só vai aprender a ler e escrever corretamente fazendo isso de forma manual”, afirmou Douglas.

Manuel Peçanha Nascimento, presidente do Instituto Braille e cego total, recebeu um óculos e destaca que o equipamento é de grande utilidade e traz facilidade na leitura de produtos na prateleira dos supermercados. Apesar dos benefícios para o cotidiano, a discussão acerca da utilização do equipamento em idade escolar, no processo de aprendizagem, continua bastante presente entre a comunidade.
Um dos objetivos do OrCam MyEye é facilitar o acesso a livros e outros textos de maneira rápida, garantindo a oportunidade de acesso aos usuários com deficiência visual a todos os conteúdos. Entretanto, essa possível facilidade pode representar um risco ao processo de alfabetização, inclusão e acessibilidade escolar de crianças e adolescentes cegos e com baixa visão, segundo a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB).
Em matéria publicada em abril deste ano pela ONCB, a organização alerta que o OrCam jamais deveria ser comercializado com a promessa de ser a grande solução para acessibilidade e inclusão escolar. “Dentre tantas limitações, ele não efetua leitura de símbolos como os de matemática, química, física e os musicais. O dispositivo também não realiza leitura de planilhas, tabelas e de algumas estruturas de textos e não reconhece figuras e gráficos, que são utilizados comumente em materiais educacionais”, relata.
A entidade também afirma que a bateria do dispositivo tem duração de cerca de apenas duas horas, tempo insuficiente para metade da jornada escolar de uma criança e adolescente.
Braille e recursos básicos
Os óculos inteligentes não substituem nem possuem as funcionalidades abrangentes do sistema braille. Este continua sendo o principal método de leitura e escrita para pessoas com deficiência visual, permitindo a representação não apenas de letras e números, como também de símbolos e pontuações, elementos fundamentais para o aprendizado completo e inclusivo. Porém, a União Mundial de Cegos estima que somente de 1% a 5% dos livros produzidos no mundo são adaptados para o braille.
Quando se fala em educação inclusiva, o tema central é a acessibilidade. No Brasil, onde a escassez de materiais essenciais, como livros didáticos em braille, ainda é uma realidade, questiona-se a efetividade de soluções como a aquisição de óculos com preços elevados.
A ONCB afirma que existem aplicativos mais avançados e gratuitos, que funcionam para os sistemas Android e iOS, como o Seeing AI, Sullivan +, Be My Eyes, dentre outros, que são mais efetivos para crianças em idade escolar.
A organização também defende que o alto investimento dedicado aos equipamentos deveria ser aplicado em recursos de extrema necessidade para pessoas com deficiências visuais, como bengalas, óculos de grau, lupas, próteses, máquinas Braille e capacitação dos professores, para promover uma verdadeira inclusão e acessibilidade.
Douglas de Melo acredita que o primeiro caminho para contribuir com a inclusão é a participação. É preciso ouvir, compreender as necessidades de quem convive com as limitações e envolver as pessoas com deficiência e suas famílias na definição das políticas, dos planos e das orientações pedagógicas. Aliado a investimentos bem direcionados e profissionais treinados, a inclusão de pessoas com deficiência visual na educação será concretizada.
*Imagem em destaque: Michelle Alves/Secom