Dentro ou fora da universidade, resistir para existir

Dentro ou fora da universidade, resistir para existir

Esse é o lema da vida de Hayla Brito, estudante de Direito que luta pela inclusão na sala de aula e na sociedade

Maine Pinheiro e Patrick Lóss

No Brasil do século XVI, Xica Manicongo, a primeira travesti do país, desafiou as regras da colônia e se recusou a ser apagada diante da violência contra sua existência.

Quase cinco séculos depois, a história ecoa todos os dias na vida de Hayla Brito, uma das primeiras mulheres trans a ocupar um cargo de liderança no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e na Federação Nacional dos Estudantes de Direito (FENED). Como Xica, há 25 anos, Hayla carrega consigo o peso de abrir portas – e, muitas vezes, de bater contra elas.

A vida adulta chegou com tudo para Hayla, “cria de Serra Dourada”, como ela se refere – bairro da periferia do município de Serra. Pouco depois de concluir o ensino médio, sua identidade foi um ponto de ruptura dentro de casa: quando se afirmou, perdeu o acolhimento da mãe e tudo o que restou foi um apoio tímido do pai, que não foi suficiente para mantê-la protegida. 

Sem um lar seguro e com a necessidade batendo à porta, enfrentou a realidade cruel que muitas mulheres trans conhecem bem: a prostituição. “A partir da prostituição eu tive dinheiro para pagar meu aluguel, para comer e conseguir me manter”, diz, com uma voz firme, mas cansada. 

O caminhar de Hayla

Desde o ensino médio, Hayla já se envolvia nos movimentos secundaristas, entendendo que a luta política era um caminho necessário para transformar a sua e as outras realidades. Quando ingressou na universidade, manteve o compromisso com o ativismo, ampliando sua atuação para espaços institucionais e coletivos, como o Centro Acadêmico de Direito, o DCE e a FENED. Para ela, ocupar os espaços políticos vai além da sua trajetória pessoal. Foi essa consciência que a levou a escolher o curso de Direito, para entender e usar as ferramentas jurídicas como instrumentos de resistência, luta e transformação.

Na militância pelos direitos humanos, Hayla participou da 2ª Marcha Trans Brasil, em Brasília - Foto: Reprodução/Instagram

Na universidade, Hayla também é pioneira – são apenas três estudantes trans no curso de Direito da Ufes, e as salas e os corredores que deveriam ser espaços de aprendizado às vezes se mostram como um palco de exclusão. Conquistar um lugar na universidade federal, que sempre foi um sonho para Hayla, não foi nada fácil. O curso de Direito é um dos mais concorridos e com uma das maiores notas de corte. 

Mesmo nessas condições, ela nunca desistiu. Após algumas tentativas, o sonho tornou-se realidade, e o corpo da mulher trans da periferia, fruto da escola pública, passou a ocupar um espaço que, por tantos anos, foi ocupado, em sua maioria, por homens cis, brancos, filhos das elites capixabas.

A realidade profissional fora dos muros acadêmicos

Quando a hora de entrar para o mercado de trabalho chegou, a busca por estágios revelou outro muro: o setor jurídico está longe de ser um espaço de acolhimento para profissionais trans. Enquanto o estágio não vinha, sem apoio financeiro de ninguém, não dava para deixar a prostituição. 

O primeiro ano de faculdade foi intenso, sem muito espaço ou tempo para se dedicar à pesquisa ou à extensão: Hayla tinha que conciliar as manhãs na sala de aula com tardes e noites na prostituição. Era isso ou morrer de fome. Na primeira oportunidade, começou em um estágio que a deixava desconfortável, “engessada”, como ela diz. “As pessoas não estão acostumadas a ver a gente no prédio, nas salas de aula, quem dirá em um escritório”.

Foi só no segundo ano da faculdade que, enfim, uma oportunidade de trabalho surgiu. De lá para cá, depois das aulas, a rotina continua na Associação Gold, o primeiro espaço que, depois de muitos anos, Hayla sentiu que poderia respirar sem precisar provar ou lutar por sua existência a cada instante.

-A Associação Gold (Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade) é uma associação sem fins lucrativos que atua na promoção dos direitos humanos, sobretudo para a população LGBTQIA+ no Espírito Santo.-

Lá, como Técnica de Projetos, ela se vê no olhar de tantas outras pessoas que buscam orientação, abrigo, um respiro. Cada conversa parece um espelho do passado, um lembrete de tudo que ela atravessou e do quanto ainda vai construir. “A Gold foi o lugar que me acolheu”, garante ela. 

Este acolhimento também tem sido notado por Hayla na universidade. Para ela, o uso do nome social foi uma grande vitória, fruto de muita luta. Mas ela luta por mais, não só para ela, mas para as companheiras que caminham juntas e as que ainda chegarão neste espaço. Cotas para pessoas trans, apoio psicológico e políticas de permanência são instrumentos que, segundo ela, são necessários e urgentes.

O pós acadêmico

Quando anoitece, a cidade de Vitória mostra sua outra face para Hayla. O salto alto, a maquiagem mais marcada, a postura erguida como um farol em meio à escuridão. Houve um tempo em que a prostituição era a única opção para não passar necessidade. Era assim que ela comprava comida, bancava o teto sobre a cabeça e “comprava suas coisinhas”. Hoje, Hayla ainda trabalha neste ofício, mas esse já não é seu único meio de sobreviver e ter uma renda para construir seu futuro.

Ao fim do dia, Hayla deita na cama exausta, sem saber o que o amanhã reserva. Mas certa de que seus sonhos serão a motivação para levantar no dia seguinte. Ela quer ver mais pessoas trans nas universidades, quer que elas tenham auxílios para permanecer nesse espaço e que o Direito seja uma ferramenta real para quem vive na periferia e foi colocado à margem de tudo. Ela, que além das aulas e dos trabalhos, ainda é pesquisadora e sonha em chegar ao mestrado para continuar pesquisando sobre o que muitos ignoram – o  aquilombamento de pessoas trans e travestis na Grande Vitória. 

E assim, entre dias que parecem ter mais de 24 horas, Hayla segue vivendo. Não só por ela, por Xica e por todas as outras. Todos os dias, ela é movida por uma força coletiva que embala muitas pessoas, que a faz pensar em “nós” toda vez que o “eu” vem à tona.

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