No Brasil, quantos Angelos?
Em meio a desafios diários, Angelo Almeida Pin, atleta de tiro com arco da UFES, enfrenta desafios diários para conciliar treino e estudos
Por Esther Soares e Jeiny Schitine
Universidade Federal do Espírito Santo. Goiabeiras. Vinte e quatro de janeiro de 2025. 34°C. O sol incide forte sobre o campo de tiro com arco, onde o silêncio é quebrado somente pelo estalar das flechas voando até o centro do alvo. Entre uma puxada de corda e outra, Angelo Almeida Pin, de 28 anos, se concentra para desacelerar os batimentos cardíacos, ajustar a postura, mirar e acertar o alvo.
O dia abafado começou de maneira atípica na capital do Espírito Santo, com quedas de energia que atingiram a Universidade. Para alguns, o pequeno caos ocasionado pela falta de energia, cancelamento das aulas, trânsito desordenado, a quebra da rotina em uma cidade onde o ritmo é urgente, poderia ser sinônimo de frustração. Para Angelo, foi uma oportunidade de treinar.
O que começou como um hobby lá em 2017, se transformou em algo maior, mas sem perder a essência: um passatempo pelo qual ele se diverte. O que continua estagnado, entretanto, é a estrutura de apoio e assistência ao atleta. Porque, na UFES, como ele mesmo diz, não há nenhuma.
Naquela segunda-feira, Angelo acordou como de costume, às cinco da manhã. Saiu de Cariacica, cidade em que reside com a família, em direção à UFES, onde só chegaria por volta das 7h. Dezesseis quilômetros a serem percorridos diariamente, trinta e dois ao total.
“Segunda-feira tenho aula pela manhã, eu acordo muito cedo pra poder chegar na UFES. Depois da aula geralmente vou pra casa. Mas ultimamente estou vindo treinar”, conta. Com aulas que se estendem do turno matutino ao vespertino, ele busca ajustar sua agenda para encaixar os treinos, que podem durar longas horas, às vezes, passando das 19h da noite.

Nos dias em que não há aulas, quando a rotina poderia se abrandar, Angelo escolhe se dedicar ainda mais. Incansavelmente, o dia inteiro. “Se tivesse um auxílio, ajudaria muito, né? Mas, hoje, não tem nada”, diz Angelo, um pouco conformado, ao explicar que é a paixão que o mantém no esporte.
A falta de estrutura e a luta para continuar competindo
A trajetória do atleta, embora marcada por vitórias pessoais, esbarra em muitas limitações estruturais. Não há bolsa para atletas, nem suporte financeiro para transporte, equipamentos ou alimentação. O esportista equilibra os treinos com a rotina acadêmica e o trabalho, moldando os horários conforme pode. Com todos os obstáculos, estabelecer uma rotina ideal de treinos é um desafio. “Eu queria ter uma meta, mas, por enquanto, não consigo. Tenho trabalho, tenho faculdade…”, divaga, quem sabe pensando em alguma demanda que esqueceu.
Na UFES, a ausência de uma política de assistência estudantil voltada para atletas se reflete em rotinas que, no cenário ideal, poderiam ser muito diferentes, mas que sem o devido suporte, se tornam desafiadoras.

Onde falta apoio, sobra resistência
Com uma calma característica de sua personalidade, ele segue até o campo de grama verde, refletindo o esforço contínuo de quem se dedica ao esporte. No largo e silencioso espaço, diferente do glamour que se vê nas Olimpíadas, nesse cenário não há plateia, aplausos, transmissões; não há holofotes — apenas o alvo a 18 metros de distância, um bebedouro e uma cobertura para descansar e fazer a manutenção dos equipamentos.
Outros objetos pesados também ocupam o ambiente. Antigos armários de madeira já sem portas guardam os pertences e materiais esportivos. Caixas de papelão são empilhadas e mesas de madeira bruta servem como suporte para conversas e momentos de descanso. Apesar do ritmo disciplinado que todo esporte requer, em poucos passos pelo pequeno galpão é possível perceber rastros de carinho, um porta-retrato antigo, já bastante desgastado pelo tempo, guarda uma memória importante da equipe de tiro com arco: uma foto regada a sorrisos de alunos que outrora frequentaram o campo.

Pela movimentação no campo entre os horários das 08 até 16h, o tiro com arco na UFES mostra que não tem restrições de idade, condição física, nem de contexto social. No campo, há crianças, adultos, jovens, idosos e cadeirantes, todos atraídos pelo esporte. Esse ambiente diversificado expõe a essência inclusiva do esporte, mas, ao mesmo tempo, neblina a falta de suporte institucional para que todos possam permanecer. Sem assistência estudantil específica para atletas de qualquer modalidade, muitos precisam escolher entre treinar ou trabalhar. Competir ou estudar. Aquela velha história de que somos todos iguais, como se somente o fato de praticar o esporte fosse o nivelador das diferentes condições sociais.
Quanto custa um sonho olímpico?
Só no último ano, Angelo participou de mais de 15, ao todo foram mais de 30 competições desde que se tornou atleta oficialmente. No ranqueamento nacional por equipe, junto a um grupo de 3 atletas, garantiu medalha de bronze no indoor, modalidade de 18 metros.
Enquanto me explicava a linha do tempo que traçou desde que começou a se interessar pelo esporte, meus olhos percorriam os equipamentos à nossa volta. Os arcos, imponentes, de estrutura robusta, sem arranhões. As cordas, perfeitamente tensionadas. As flechas sobre a mesa, feitas de um material refinado. Um suporte firme para o arco, que de maneira alguma seria colocado no chão. Nada parecia barato.
Então, perguntei a Angelo quanto custa, em média, para investir em bons materiais. Minha surpresa foi evidente quando ele revelou que apenas os acessórios chegam a cerca de R$ 2.500,00 — tais itens são necessários para a categoria que ele pretende migrar, a mesma das Olimpíadas.
“A base do meu equipamento é a mesma usada nas Olimpíadas, a diferença está nos acessórios extras, como a mira e os estabilizadores, que garantem mais precisão e estabilidade. Esses, no entanto, eu ainda preciso comprar.”
O silêncio um pouco constrangedor que se seguiu denunciou a discrepância óbvia entre os custos do esporte e o apoio financeiro inexistente. O pensamento logo foi cortado pelo otimismo de Angelo, “a colocação como bronze me permite tentar o Bolsa Atleta do governo do estado, é um valor que vai ajudar, então é bom. Já estou conseguindo evoluir mais, consigo comprar equipamentos melhores. Ainda mais que hoje não há auxílio nenhum. É bom ter pelo menos o bolsa atleta”.
O atleta, de sua maneira contida, deixa claro que tem em si muita persistência. Mas, o que escapa de seu controle, para além de sua boa vontade, é a imagem simbólica que se constrói de que, por vezes, eles estão à deriva da própria sorte.
“Eu poderia ter ido ao Campeonato Brasileiro, que é fora do estado. Ano passado, se não me engano, foi em Recife. Eu ainda não consegui ir à competição nacional por falta de dinheiro”, enfatiza o estudante. E qual sentido esse discurso produz senão o de desamparo e desassistência.
Irônico. O cenário na UFES revela um paradoxo: para muitos, o esporte é mais que uma forma de lazer; é uma paixão, uma carreira, um objetivo de vida. E para que isso seja possível, é necessário mais do que espaço físico para treinar. São necessários recursos, incentivo e um olhar atento por parte das instituições de ensino, que devem reconhecer o valor dos atletas dentro do ambiente universitário. Isso, a universidade não faz.
Fazendo projeções para o futuro, o mesmo entusiasmo de 2017 segue presente, Angelo expressa que irá se dedicar na modalidade disputada nas Olimpíadas pelos próximos anos. Será que ele terá a chance de chegar ao topo?
Desde a estreia nos Jogos Olímpicos, o Brasil acumulou 170 medalhas — um número ainda tímido perto dos Estados Unidos e China — mesmo assim, tenta arduamente ocupar seu lugar como uma potência esportiva. Se ainda não conseguiu, não é por falta de talentos.
No campo de tiro com arco da Universidade Federal do Espírito Santo, as lentes dos caçadores de talentos enxergam ali futuros brilhantes, capazes de transformar histórias. Para quem consegue olhar através da distância do esforço contínuo e a conquista, há esperança. Há a convicção de que somos uma grande potência. Mas, há, sobretudo, uma pergunta incômoda, a única que poderia abrir nossos olhos para a realidade do nosso país, impossível de ignorar depois de ouvir tudo que um atleta capixaba tem a dizer: no Brasil, quantos Angelos?
Espero que, em breve, essa dúvida seja substituída por outra, mais entusiasmada e menos inquietante: nas próximas Olimpíadas, quantas medalhas Angelo trará?