Apostas em todo lugar: como as “bets” estão inseridas no cotidiano do capixaba
Na Grande Vitória, das barbearias às salas de aula, as apostas digitais ocupam as rodas de conversa, misturando sonhos de fortuna e histórias de frustrações.
Por: Deivid D. Paula, Esther Soares e Mariana Santos
No salão de beleza, na fila do mercado, no intervalo da escola ou na pausa para o café no trabalho. Em cada canto da Grande Vitória, o burburinho das apostas pode ser facilmente percebido se você procurar. Estratégias, palpites e histórias de ganhos – ou perdas – circulam como moeda corrente. As comentadas “Bets” deixaram de ser um passatempo: tornaram-se parte do tecido cotidiano.
Foi no salão de beleza da ex-sogra, em meio ao zumbido dos secadores e à efervescência das conversas, que Maria Eduarda Caetano teve seu primeiro contato com as apostas online. O tema, tão inevitável quanto um corte preciso, logo tomou conta do ambiente. “Percebi que várias pessoas que frequentavam o salão comentavam sobre esses jogos, e um dia vi minha ex-sogra jogando. Pedi para ela me ensinar”, relembra.
Movida pela curiosidade e pela promessa de lucro fácil, Maria Eduarda decidiu arriscar os R$ 80 que havia ganhado em sua diária. No entanto, o entusiasmo inicial rapidamente deu lugar ao desespero ao ver todo o dinheiro desaparecer em questão de minutos.
À medida que a tarde avança, o salão onde Maria Eduarda trabalha se enche. Não são só cabelos que caem no chão – são histórias, palpites e sonhos jogados ao ar. Nesse ambiente regado de opiniões, as apostas se tornaram verdadeiras celebridades. Longe de alcançar consensos, na boca do povo, elas sobrevivem das controvérsias. Enquanto as lâminas deslizam pelos rostos e o spray de água umedece os cabelos, o salão vira um campo de debates acalorados. Cada cliente tem uma história, um palpite certeiro ou – no mínimo, um primo sortudo.
Maria Eduarda não precisou procurar muito para perceber o alcance das apostas online. Elas estavam em todos os lugares, como uma sombra discreta do cotidiano. “Eu já peguei gente jogando no salão de beleza, já peguei gente jogando no ônibus. As pessoas, assim, literalmente são viciadas nesse tipo de jogo, né? E em qualquer lugar a gente acaba achando…”
Ela ainda lembra, com certa incredulidade, de um episódio específico: “Me surpreendi da vez que peguei gente jogando no trajeto de ir à padaria e de voltar.” A cena, por mais trivial que parecesse, era um retrato fiel do quanto essas apostas haviam se infiltrado no dia a dia, transformando momentos comuns em um campo para a busca incessante de lucro – ou de distração.
A presença desses diálogos sobre apostas digitais pulsa nas conversas cotidianas como o som de fundo de uma novela que ninguém admite assistir, mas todos sabem os personagens. Invisíveis entre cabeleireiros, passageiros e viajantes, escutamos cada história com um misto de fascínio e incredulidade. Quem ganhou? Quem perdeu? Quem acredita? Quem sabe todos os segredos dos jogos?
No fim, as plataformas de apostas não sobrevivem apenas das promessas – elas prosperam no burburinho, na conversa paralela de quem, entre um corte de cabelo ou uma ida à padaria, ainda se atreve a sonhar. Porque, mesmo com suas incertezas, o universo das “bets” segue alimentando a ilusão de que a sorte, um dia, pode sorrir para qualquer um.
Apostas nas escolas
Entre os muitos e improváveis ecossistemas onde conversas sobre apostas, ganhos fáceis e o nome de alguma Bets circula, talvez o último lugar que venha à mente seja o ambiente escolar. Mas a estudante do pequeno colégio Rosa Maria Reis, localizado na cidade de Cariacica, Lorena de Oliveira, é prova de que essas fronteiras não existem.
No ambiente escolar, onde cadernos e mochilas disputam espaço com os celulares, histórias como a de Lorena expõem a realidade. Aos 16 anos, ela já conhece as apostas digitais e também já se aventura nesse universo.
Conversando com ela, fica claro que o ponto de partida foi um relato casual da irmã mais velha, que certa vez mencionou ter ganho R$60 em uma dessas plataformas. “Ela jogava e me disse que o jogo era muito bom, mas que também dava pra perder”, relembra Lorena, com a tranquilidade de quem fala sobre algo quase banal. A curiosidade logo se transformou em ação, mesmo que ela soubesse que estava rompendo limites. “Tive a ideia de apostar mesmo sendo de menor e, ainda por cima, usando um dinheiro que nem era meu.”
A rotina de Lorena no mundo das apostas começou com passos hesitantes, mas rápidos. Uma oportunidade surgiu quando ela percebeu que o pai tinha R$60 disponíveis no Pix. “Fiz a transferência pra mim”, confessa, sem esconder o sorriso amarelo ao lembrar do nervosismo. Na primeira tentativa, apostou R$30, com o objetivo de dobrar o valor, mas o plano deu errado. Determinada a recuperar o prejuízo, decidiu arriscar os outros R$30. “Pensei que, pelo menos, conseguiria de volta o que já tinha perdido”, explica. O desfecho, no entanto, foi ainda mais amargo: perdeu tudo.
Ela revela que a aventura com as apostas não começou de forma isolada. “Minha amiga já jogou e chegou a ganhar R$300”, conta, descrevendo a empolgação inicial ao ouvir histórias de sucesso. Mas, como tudo nesse universo, a sorte vem com um custo. “Teve um dia que ela perdeu R$170 por ganância, querendo ganhar mais.”
As histórias de vitórias e derrotas circulam com a velocidade de um clique, criando um ambiente onde o fascínio pelo ganho fácil convive com a frustração da perda. Quando questionada se realmente acredita nesses relatos de lucros, Lorena é direta. “Sim, ganham. Mas isso é uma estratégia do jogo.” Ela explica com surpreendente clareza como as plataformas operam: “Não são valores altos que essas pessoas ganham. Quem realmente lucra são os famosos que divulgam e dizem que a plataforma tá pagando muito.”
Ela entende que as vitórias são seletivas, quase programadas. “O jogo sorteia entre si quem vai ganhar uma quantia, mas os que perdem são sempre a maioria. É mais provável perder do que ganhar”, diz, com a naturalidade de quem já internalizou as regras do jogo.
Sobre recomendar as apostas a alguém, Lorena é categórica. “Nunca falo pra jogar, porque sei que não ganha. Esses jogos são só disfarces, como aqueles sorteios de maquiagem antigamente. Não recomendo nada. Se a pessoa perder, pelo menos não foi por incentivo meu.” Ela também revela uma percepção madura sobre os avisos das próprias plataformas. “Eles recomendam não jogar com dinheiro comprometido, porque é bem mais provável perder. Mas quem segue isso?”.
Por trás dos jogos: a verdade nas apostas
Nesse complexo território dos algoritmos das Bets, há um agente intermediário que guia os apostadores mais fieis: as casas de consultoria.
Um ex-programador, cujo nome será mantido em sigilo, atuou em uma consultoria que prestava serviços para uma das gigantes do setor, a Bet365. Ele aceitou nos conduzir pelos bastidores de uma indústria que flerta com a legalidade e, ao mesmo tempo, toca profundamente a vida de milhares de brasileiros. Desvendando os mecanismos que movem esse mercado sedutor e traiçoeiro, ele revelou o que muitos só descobrem após perdas irreparáveis: as promessas de riqueza fácil escondem dilemas éticos profundos e um sistema desenhado para garantir o lucro constante da casa.
Ele explica que as consultorias, conhecidas como “Tipsters”, funcionam como guias personalizados para apostadores. Por meio de aplicativos de mensagem, os clientes recebem orientações detalhadas: quais jogos apostar, as melhores faixas de odds (número que eles podem apostar) e as estratégias para maximizar os lucros. É um trabalho técnico que envolve análise de dados, estatísticas e um conhecimento profundo dos esportes, mas que ainda depende da imprevisibilidade inerente a qualquer aposta.
“Nas apostas esportivas, a lógica é diferente do cassino”, conta. “Apostas em futebol, reality shows ou até eleições dependem de fatores externos, o que dá uma falsa sensação de controle para o usuário. Já no cassino, o algoritmo é projetado para inicialmente oferecer vitórias e, com o tempo, aumentar as derrotas, retendo o jogador em um ciclo de frustração e esperança”.
Vício profissional
Embora as apostas esportivas pareçam menos prejudiciais que o cassino, o vício também está presente. Nossa fonte narra a rotina de pessoas que transformam as apostas em profissão. “Existem apostadores que contratam consultorias por valores altíssimos, até R$ 600 mil ao ano, para garantir um retorno mensal de R$ 10 mil a R$ 40 mil. É algo levado a sério por esse público, mas o risco é enorme”.
Esse risco, segundo ele, é acentuado pela desigualdade social. As casas de apostas virtuais, diferente dos cassinos de Las Vegas ou cruzeiros de luxo, são projetadas para atrair as classes mais vulneráveis. “O público-alvo não é o rico que aposta por diversão, mas o pobre que busca ascensão financeira rápida. É um marketing cruel, porque explora a necessidade”.
Essa abordagem fica evidente nas medidas recentes do governo federal, que tentam proibir o uso de auxílios como o Bolsa Família em apostas. “É a prova de que essas plataformas miram os mais necessitados. Apostar um dinheiro que deveria pagar contas ou comprar comida é o maior risco hoje, além do impacto psicológico”.
Matemática do lucro
Ele reforça um ponto que, segundo ele, deveria ser mais claro para os apostadores: “Para as casas de apostas terem lucro, a maioria precisa perder. Não existe outra forma. É matemática básica. O dinheiro que entra não vem de publicidade ou investimentos, mas do bolso dos usuários”.
E, mesmo para os que conseguem vencer o sistema, o caminho é árduo. Ele relata casos de contas bloqueadas ou limitadas após ganhos expressivos. “Quem leva as apostas como trabalho muitas vezes tem as contas banidas quando atingem certo valor, como R$ 50 mil ou R$ 100 mil. Aí eles precisam criar contas com CPFs de familiares ou amigos para continuar jogando. Isso já mostra que nem para a casa de aposta é interessante que o jogador ganhe demais”.
Aposta social
No final, ele faz uma crítica contundente à forma como essas plataformas operam no Brasil. “Estamos em um país onde muitos vivem na linha da pobreza, e as apostas são vendidas como solução. É cruel. No fim, o sistema é desenhado para perpetuar a desigualdade. A casa sempre ganha – mas o que ela tira é muito mais do que dinheiro. Ela rouba esperança, estabilidade e, muitas vezes, a própria dignidade”.
Por fim, fica uma reflexão. “O jogo é atrativo porque promete transformar centavos em fortunas. Mas para cada jogador que ganha, existem centenas que perdem tudo. No Brasil, o que parece um sonho é, na verdade, uma aposta na própria ruína”.
Casas de apostas regularizadas
Em outubro deste ano, o Ministério da Fazenda publicou uma lista de bets que estavam liberadas para atuarem no Brasil. Ao todo, são 193 bets, que pertencem a 89 empresas, podem atuar no país. Segundo o Portal G1, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que até 600 sites de apostas online serão banidos do Brasil nos próximos meses por apresentarem irregularidades em relação à legislação aprovada pelo Congresso Nacional.
Entre os mais famosos das casas de apostas, conhecido como “Jogo do Tigrinho”, ficou fora da lista. A plataforma é da empresa PG Soft, sediada em Malta. O jogo de apostas no celular virou uma febre e está no centro de dezenas de investigações sobre golpes. Influenciadores digitais com alto número de seguidores usavam suas redes para divulgar o jogo.
“Tá pagando”, “Tigrinho vai bancar o fim de semana”, entre diversas outras afirmações invadem as redes sociais, promovendo e incentivando o uso da plataforma. Em julho, o Governo avaliava se iria liberar o jogo no Brasil, mas ainda sem resultados.

Foi em 2022 que Gabriela Costa, moradora de Viana, deu seu primeiro passo no universo das apostas. “Conheci os jogos pelo Instagram. Uma influenciadora postava sobre isso, e eu via os ganhos dela. Aí pensei: será que é verdade?”, relembra.
A dúvida durou pouco tempo. Aos 23 anos, na primeira tentativa, Gabriela transformou R$10,00 em mil. “Milzão”, como ela mesma descreve sem esconder o misto de surpresa e orgulho. O valor investido foi multiplicado cem vezes, e a resposta parecia clara: é verdade. Em um país onde a média de trabalho semanal é de 39 horas, e o salário mínimo mensal R$1.412,00, até o mais cético seria tomado pela surpresa.
Curioso, perguntei: “O que você fez com o dinheiro?”. Como se fosse um dia marcado em sua memória, respondeu: “A primeira vez que eu ganhei, fiz trança no cabelo. Eu não tinha 400 reais pra tirar do meu dinheiro. Mas aí eu ganhei, peguei e fiz”.
A trança, as contas e tudo aquilo que Gabriela não conseguia pagar com o salário de recepcionista marcou o início de uma relação otimista com as apostas. Naquele dia, parecia que uma maré de sorte havia se iniciado para ela, uma sequência que se estendeu por várias outras vezes. “Eu colocava 10, e aí subia um pouquinho. Aí depois de 10, eu colocava 20 e assim por diante. Quanto mais eu jogava, via ganho, aí mesmo que queria jogar mais”, contou.
A rotina de apostas começou a influenciar diretamente em sua vida financeira. Morando de aluguel, Gabriela revelou que, em muitos momentos, os “ganhos” eram destinados a quitar essa conta, além de permitir pequenos luxos, que, na verdade, não passam de necessidades reais. “Eu comprei roupa. Claro. Luxo. Querendo ou não, o jogo ajuda”.

O cruel confronto entre a probabilidade matemática e a autoconfiança é um paradoxo. Por um lado, ele revela ao jogador o inevitável precipício que se esconde após cada clique na roleta; por outro, alimenta a ilusão de que existe uma inteligência capaz de superar a máquina. O que não contam é que os jogos só funcionam porque a “casa” tem uma certeza absoluta: no fim, ela sempre termina ganhando.
Os jogadores, porém, se enganam. Em grupos do Telegram e listas compartilhadas, são alimentados pela ilusão de que podem enganar o sistema. Estratégias, supostos segredos e horários mágicos para jogar são compartilhados freneticamente, inundando o chat com links e fontes brilhantes, prometendo baixas taxas de investimento e retornos calorosos.
Quando a confiança cresce, quando você acredita que domina os horários ou decifra a lógica matemática do jogo, é exatamente aí que a maré de sorte se desfaz, dando lugar a uma sequência de derrotas. Gabriela também participou desses grupos, e ao lembrar das experiências constatou: “Não, esse negócio de horário… É mentira. Tipo, tem lista. Mas só que tem hora que bate. E tem hora que não bate”.

Depois de um prejuízo de mil reais, ela relembra que a frustração foi apenas uma pequena parte, o que realmente ficou marcado foi quando precisou pedir dinheiro emprestado, sentindo que ultrapassou todos os limites.
Gabriela decidiu se afastar, abandonando os jogos por um tempo. Em 2024, ela retornou, mas com uma estratégia diferente. “Agora eu voltei, mas só que eu aposto pouco. Eu gosto de jogar os jogos escondidos. Não vou em tigre, em coelho, touro. Eu vou nos outros jogos que não são da PG”.
Mas a PG Soft não é a única empresa que disputa esse território. Dentre as provedoras de jogos de aposta online no Brasil também se destacam nomes como Betsoft, NetEnt, Pragmatic Play e Evolution Games.
A quase infinita vitrine de jogos convidativos é um desafio para o Governo Federal, que na batalha da regulamentação do mercado de apostas online enfrenta um tipo de “Hidra das Bets”: cada vez que um jogo se torna irregular, outros parecem surgir no lugar.